Em busca da nossa justiça
Ao ler alguns documentos históricos relacionados com o sector de justiça, redigidos nos anos áureos da chamada “justiça popular”, encontrei algumas passagens que, não obstante o decurso do tempo e a ocorrência de profundas transformações na histórica do nosso país, permanecem extraordinariamente actuais e, porque não, essenciais à tomada de algumas decisões rumo a uma cada vez melhor e maior justiça para todos os moçambicanos. A partir desta informação histórica, organizarei uma pequena reflexão em torno de 3 palavras-chave: simplificação, investigação e implementação.
Sobre a simplificação do quadro jurídico-legal moçambicano, nos Documentos Preparatórios da 8.ª Sessão do Comité Central da Frelimo, realizada entre os dias 11 e 27 de Fevereiro de 1976, encontra-se uma importante Resolução sobre a Justiça, que constituiu uma das bases da reforma judiciária de 1978, consubstanciada na aprovação da Lei n.º 12/78, de 2 de Dezembro (Lei que regulamenta a estrutura e composição dos Tribunais Populares). Escreveu-se no referido documento que “impõe-se a simplificação das nossas leis, libertando-as dum tecnicismo que as torna incompreensíveis para o povo. Quando por motivos técnicos ou outros não for possível evitar completamente o tecnicismo, a rádio, a imprensa, os jornais do povo e as diversas reuniões populares devem ser utilizados para explicar em detalhe os princípios e objectivos que inspiram as leis”
Esta posição foi consubstanciada na Directiva sobre a Justiça do III Congresso da Frelimo (3 a 7 de Fevereiro de 1977), nos seguintes termos: “Ao direito novo deve corresponder também uma linguagem nova orientada principalmente no sentido da simplicidade. Devemos encontrar a linguagem simples e popular que facilite o entendimento e divulgação das leis pelas massas, sem prejudicar a necessária eficácia técnica. Temos que encontrar novos métodos de levar as leis ao conhecimento do povo, para que possam ser inteiramente assumidas”.
Luís Mondlane, actualmente juiz-presidente do Conselho Constitucional, escreveu, em 1997, para a Revista Jurídica da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane: “É do conhecimento geral que o Direito vigente em Moçambique foi concebido em tempo bastante recuado para uma realidade social distinta da prevalecente em Moçambique, quer no momento da sua adopção, quer nos presentes dias. Nos últimos tempos têm sido adoptadas alterações que, longe de reformular o Direito no sentido da sua conformação com a realidade social podem traduzir-se em distorções graves ao próprio sistema. Há que reformular o direito para que a justiça que, através dele é obtida, seja socialmente justa. (…) É necessário desmitificar o direito, democratizar o direito e a própria administração da justiça. A lei e o direito têm que ser entendidos pelo homem comum e estar ao seu serviço”.
No entanto, conforme ficou demonstrado nos anos que se seguiram e tendo presente a realidade actual, não houve lugar a nenhum reforma generalizada e profunda do direito. As leis que se seguiram e substituíram as outras ao serviço do Estado colonial continuaram a ser redigidas numa linguagem inacessível à larga maioria da população moçambicana, de cariz altamente tecnicista, e desprovida dos necessários mecanismos de implementação. Na realidade, uma vez volvidos praticamente 25 anos de Independência nacional, ainda não foi possível desencadear um processo sério e profundo de reforma legal. O exemplo maior exemplo que podemos referir prende-se com o facto de continuarem em vigor, na República de Moçambique, o Código Penal de 1886, o Código de Processo Penal de 1929 e o Código Civil de 1967, este último parcialmente revisto nos assuntos de família e comércio.
Mesmo a reforma realizada nos demais códigos e no conjunto de leis aprovadas ao longo dos 35 anos de Independência, salvo algumas excepções, pouca mudança trouxeram em relação ao quadro jurídico tradicional de herança colonial, designadamente no que diz respeito aos aspectos formais. Aliás, o ex. colonizador continua a ser a principal fonte de inspiração do legislador moçambicano e, nalguns casos, pacotes legislativos completos foram importados e adoptados no ordenamento jurídico nacional. Problema maior reside nos códigos de processo, vitais no capítulo do acesso à justiça, mas que, em virtude do alto grau de complexidade e excessiva dose de formalismo, se tornam num obstáculo à efectivação dos direitos e liberdades fundamentais.
Sobre este aspecto, entendo que temos que ser finalmente capazes de perceber que uma boa lei não significa necessariamente uma lei escrita de fora erudita, na melhor das linguagens técnico-jurídicas, recheada dos mais sublimes conceitos e institutos, na qual, muitas vezes, a forma acaba se sobrepondo ao conteúdo, despindo-a totalmente da desejável eficácia jurídica. Entendo que uma boa lei é aquela que, pela sua simplicidade, entendida, assumida e implementada por todos os cidadãos.
Em relação à investigação da realidade moçambicana para uma maior e necessária adequação do Direito àquela, importa referir que um dos aspectos da Reforma no sector da justiça herdado da Administração colonial e que nunca chegou a ser cabal e verdadeiramente consumada, prendia-se precisamente com a necessidade de fazer aprovar um quadro jurídico-legal consentâneo com os objectivos preconizados pelo Estado moçambicano e a realidade vivida pelos moçambicanos, precedida por um trabalho de pesquisa de pesquisa. Veja-se que, de acordo com a Resolução sobre a Justiça acima referida, “há que proceder com urgência à recolha de elementos que nos permitam um conhecimento aprofundado dos costumes e regras praticados pelo povo moçambicano, para que as novas leis exprimam e correspondam às realidades do País, quer para as consagrar, quer para as corrigir, na medida em que não correspondam à orientação política da Frelimo”; e, “só a partir de todo esse trabalho de conhecimento das realidades e experiências no nosso povo se poderá criar um Direito novo, e pôr a funcionar um sistema de aplicação da justiça que seja verdadeiramente popular e moçambicano”.
Na mesma linha refere Rui Baltazar, então Ministro da Justiça, no longínquo ano de 1977, em texto publicado na revista “Justiça Popular”: “Sem um conhecimento exacto ou grandemente aproximado das nossas realidades sociais, dos sentimentos dominantes do nosso povo e da sua vida, não podemos pensar em novos códigos”. A pesquisa era assim condição essencial à feitura de novas leis, especialmente dos grandes códigos de direito substantivo e de direito processual.
O levantamento e a análise da rica e imensa realidade jurídica criada, dinamizada e desenvolvida ao nível das comunidades só começaram a ser realizados muitos anos mais tarde, na segunda metade da década de noventa, quanto, em parceria, o Centro de Estudos Africanos, da Universidade Eduardo Mondlane, e o Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, se lançaram num programa de pesquisa que culminou na publicação, em 2003, da obra “Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique”, com organização de Boaventura Sousa Santos e João Carlos Trindade. Este trabalho foi de uma grandeza e importância inegáveis, tendo contribuído para dar a conhecer um pouco mais sobre a administração da justiça em Moçambique. Pecou, no entanto, por não ser tido a desejável sequência, principalmente no que diz respeito ao processo de reforma legislativa.
Dai que haja necessidade de dar a necessária e merecida relevância à investigação da realidade moçambicana, estabelecendo uma ponte para com o processo de reforma legal. Mais do que importar modelos legislativos de outros quadrantes geográficos, ainda que apresentados como sucesso, importa conhecer a nossa realidade, propor soluções adequadas, conformes e justas, para, seguidamente as submeter a um processo democrático de auscultação pública, conquistando uma base de legitimação, culminando na sua aprovação. Um importante papel deve ser prestado pelas faculdades de direito, que, para além de preparação a próxima geração de criadores e implementadores da lei, deverão igualmente associar o ensino à investigação.
Finalmente, sobre a implementação, há seguramente que um enorme trabalho a fazer. Quantas vezes, em encontros e debates, nos jornais e na televisão, dentro e fora das instituições, ouvimos dizer que o maior problema hoje não é tanto a falta de leis, mas sim a sua implementação? Um dos mais recentes episódios que vivi relacionado com este problema sucedeu, há poucas semanas, numa viagem à cidade de Nampula, quando fui interceptado por uma brigada de trânsito. Uma vez cumpridas as formalidades de vistoria da documentação, e após ter constatado, que, precisamente ao lado, na via pública, dezenas de motociclistas circulavam sem o capacete obrigatório, e outros tantos automobilistas transitavam desprovidos do necessário cinto de segurança, regras impostas à luz do Decreto n.º 17/93, de 25 de Agosto, perguntei a uma ilustre agente da Polícia de Trânsito porque deixavam tais prevaricadores agir impunemente, A resposta foi muito simples: “As multas são muito baixas, eles vão pagar e voltam a fazer o mesmo”! Bem, fiquei naturalmente sem palavras! Afinal para que serve a nossa Polícia?
Este é apenas um pequeno exemplo de que, quantas vezes se elaboram leis sem que, depois, tenhamos condições para as implementar, umas vezes porque o problema reside nas próprias leis, pelas razões acima aludidas (demasiado complexas e inadequadas à realidade moçambicana, aos quais acrescento a falta de mecanismos estabelecidos nas próprias leis que sejam orientados à sua implementação efectiva), outras vezes quando o problema acontece ao nível dos próprios implementadores, visto que, qualquer processo de implementação pressupõe, por um lado, uma actividade permanente de divulgação, através dos mais variados e adequados meios, germinando nos cidadãos uma consciência jurídica, e, por outro lado, um aturado e contínuo exercício de monitoria, controlo e fiscalização.
Carlos Manuel Serra
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